Condutas utópicas para um mundo em restauro
Neste videoarte intitulado “Metrô-pólis” retrato as idas e vindas ocasionadas pelo trabalho. Nas imagens não há rostos, nem variação de gestos. O importante é deflagrar a ausência de subjetividade e a frieza dessa massa acinzentada que colore todos os frames. O som da batida se repete, até que sinos anunciam a procissão que nos levará para a serra que arranhará nossos ouvidos. Já faz pelo menos seis anos que este vídeos foi produzido na cidade de São Paulo e pouco mudou.
Ainda que fisicamente juntos no cotidiano apresentado pelo vídeo, permanecemos distanciados do outro, de nós mesmos e da natureza, configurando um período caracterizado por uma desconexão travestida pela hiperconexão do digital. Regidos pela “erosão do outro”, produzimos armaduras, espinhos e couraças, e, de modo narcísico, seguimos desconectados de nós mesmos, acreditando ser realização aquilo que na verdade é a nossa auto-exploração. (HAN, 2017a, 2017b). As relações humanas escorrem entre os dedos e mimetizam as características das imagens na contemporaneidade: efêmeras, ubíquas e superficiais. Por fim, sequestrados pelo relógio do trabalho, entramos numa roda que gira a todo vapor e não sai do lugar.
Desgaste: o resultado da atividade humana traduzido em uma palavra. Do lado de dentro da nossa pele, pulsões de “tristeza”. Do lado de fora, nossa “casa” Planeta Terra reclama por socorro com gestos decifráveis a quem possui escuta atenta. Já não há estoque disponível para reposição, nem dentro e nem fora. A realidade é que, distantes e barulhentos, nos tornamos exímios produtores de extinções.
Neste segundo vídeo, produzido mais recentemente, realizo uma performance onde trago todas as minhas peças de roupa e as visto. Camada a camada, as peças vão se sobrepondo, interrompendo a fluidez de meus gestos até não ser mais possível vestir dada a paralisação do corpo. Não chego até o fim das peças e me misturo, como um monstro cansado, naquela pilha de…excessos. Este é um cenário provavelmente “normal” que colabora com a perpetuação de práticas que superficialmente nos distanciam ainda mais de nós mesmos.
Se o cenário já estava ruim, agora em 2020 ficou ainda pior, pois a crise pandêmica escancarou as vulnerabilidades preexistentes em nossos sistemas (políticos, econômicos, ambientais, sociais, conjugais, existenciais e educacionais, etc.). Nos fez comungar sentimentos negativos: angústia, medo, raiva. E, em meio à tantos lutos e lutas, o atual contexto nos obrigou assistir de camarote o reflexo de nossas práticas predatórias no ecossistema, nos trazendo impasses repletos de dúvidas. Diante desta conjuntura, a convocatória para lidar de frente com esta crise de resolução incerta está aberta e não há escapatória.
Crise é uma palavra de etimologia latina crĭsis,is que quer dizer “momento de mudança súbita”. Também possui origem na etimologia grega krísis,eōs, que quer dizer “ação ou faculdade de distinguir, decisão, momento difícil”. Independente da preferência etimológica, a crise em curso sugere a necessidade de transformação de nossa conduta, de nosso modo de existência praticado em… coletivo. O que está em jogo é o restauro de um mundo coabitado por aproximadamente 7,5 bilhões de pessoas.
Um caminho para a mudança deve ser percorrido a partir de um começo possível, o qual não pertence nem à esfera do ontem e nem do amanhã. É nos “agoras” que nos atravessam que está a oportunidade de realizar outras escolhas e de reformular nossa conduta. Para isso, é essencial que reposicionemos nossa visão de mundo egocêntrica, ou quando muito antropocêntrica, para uma perspectiva cosmocêntrica. Esta é uma das utopias necessárias.
A utopia da consciência do corpo expandido
São muitas as variantes que traduzem esta perspectiva. A visão ecossistêmica, holística, rizomática, intersemiótica, cosmológica, cruzada, em rede, intersseccional, integrada, coordenada, convergente, colaborativa, etc. são exemplos que possuem em comum o fato de compreenderem o elo existente entre as “partes” e o “todo”. Neste mesmo espectro encontram-se também as visões dos povos originários, que, embora distintas entre si, apresentam pistas para nos ajudar a perseguir este horizonte utópico.
Nas palavras de Ailton Krenak, líder indígena da etnia indígena krenak, “fomos nos alienando desse organismo de que somos parte, a Terra, e passamos a pensar que ele é uma coisa e nós, outra: A Terra e a humanidade” (KRENAK, 2019, p. 16–17). Tal perspectiva confere também uma noção de consciência expandida para o corpo uma vez que estaríamos conectados com a rede de afetações presente neste corpo maior do qual fazemos parte: o mundo, a Terra, a natureza, o ecossistema, o cosmos… Consequentemente, é provável que estaríamos implicados em nossa conduta de modo menos predatório.
De modo complementar, Renato Ferracini, pesquisador do LUME (Núcleo Interdisicplinar de Pesquisas Teatrais — UNICAMP) e professor e orientador de Pós-Graduação do PPGADC — IA (UNICAMP), a partir do pensamento de Espinoza, apresenta apontamentos interessantes respeito da ideia de corpo que vale a pena ser destacado.
A quem se interessar:
Ferracini diz que, para Espinoza, independe de possuir identidade ou funcionalidade, “corpo” é a relação de composição de suas partes — se adequando perfeitamente à visão defendida por este texto. Pode tanto referir-se a uma célula composta por suas partes intracelulares (núcleo, plasma, mitocôndrias, etc.), como também referir-se ao conjunto mais complexo denominado por “universo” — que, provavelmente, poderia ser chamado de Deus. Logo, pensar sobre o corpo é justamente pensar em como suas partes se relacionam, independente de estar vivo. Assim, a sociedade, a casa, a mão, a sala, a pedra, a escola, o canil, a geladeira: tudo é corpo. Por serem corpo, apresentam capacidade de afetar e de ser afetado, o que lhes conferirá, como consequência, um aumento ou uma diminuição do grau de potência que se estabelece neste encontro.
Quando há a potencialização ou um aumento da ação no mundo de todas as partes envolvidas temos o que Espinoza chama de alegria. Já a tristeza seria exatamente o contrário, ou seja, a sua diminuição de ação no mundo. Isso significa dizer que um sujeito, lido como “corpo”, apresenta um conjunto de partes intrínsecas (sua subjetividade, sua singularidade) que lhe faz agir no mundo ao mesmo tempo que o mundo age sobre o sujeito. É esta ideia de “afetação” correlacional que determinará a forma como se desenhará o percurso na caminhada vivente, podendo esta se apresentar através com a potência ampliada (“alegre”) ou diminuída (“triste”).
Olhando sob esta perspectiva para o contexto atual apresentado pela pandemia e a nossa problemática de restauro do mundo, podemos inferir que, ainda estamos longe de ampliar nossas potências e multiplicar alegrias. Afinal, continuamos orientados por uma perspectiva de corpo pouco ampliada. E, ao que parece, se seguirmos priorizando apenas os tópicos aparentes na “ponta-do-iceberg-da-saúde”, continuaremos em estado de crise cozinhando ingenuamente nossa próxima pandemia, ou produzindo toneladas de plástico como solução.
Rumo à alegria: utopia das presenças radicais
Ora, então como fazemos para ampliar nossas potências? Neste pensamento de Ferracini, o aumento de nossas potências depende de encontros entre corpos (vivos ou não) capazes produzir esta ideia de “alegria”, de maneira que ambas as partes envolvidas consigam aumentar a sua ação no mundo, ou seja, fortalecendo seu conatus (desejo). Significa constituir ações que possam beneficiar tanto a nós, como aos tantos outros existentes (o mundo, a natureza, a outra pessoa, o outro país, etc.). Envolve, sobretudo, uma perspectiva atenta ao nosso posicionamento ético, na esfera das relações que estabelecemos com tudo o que nos cerca e, também, atenta aos efeitos gerados em nosso corpo físico, por exemplo.
Como constituir encontros “alegres”? O autor não nos apresenta de modo declarado um “método”, mas aponta que a ideia de “presenças radicais” como uma utopia (uma outra!) capaz de apresentar-se de modo compositivo diante das partes, talvez uma composição que preserve o dissenso e promova o comum ao mesmo tempo.
Para o autor, a produção de “efeitos de presença”, decorre da porosidade relacional dos corpos numa sempre ontogênese da ação em ato; uma certa escuta do fora que inclui o outro, o espaço e o tempo na tentativa de estabelecer uma relação coletiva de jogo potente e poético (FERRACINI, 2013, p.3), ou seja, “efeitos de presença como zona de forças em relação, poder de afetar e de ser afetado, gerando um maior poder/força de ampliação de ação” (FERRACINI, 2013, p.4), vinculando “um estado coletivo e relacional que conecta e dilui as individualidades numa potência coletiva de ação”(FERRACINI, 2013, p.4).
Assim, a partir dos apontamentos e reflexões apresentadas, uma das pistas para lidar com a crise no contemporâneo parece ser esta de estabelecer estas presenças radicais que, por sua vez, poderiam permitir também a ampliação da consciência a respeito daquilo que atravessa os poros do corpo — um corpo expandido. Tornaria ativa a escuta para as sensações geradas nos instantes e a modulação dos afetos que produzem alegria e tristeza, fazendo-nos optar por aqueles que possam ampliar a nossa potência num nível individual e também coletivo. Por fim, não se trataria de uma rumo a ser alcançado, mas uma ética a ser percorrida.
Referências
FERRACINI, R. Presença e Vida. Corpos em arte. In: VII Reunião Científica da Abrace. Belo Horizonte, 2013.
HAN, B. C. Agonia do Eros. Petrópolis: Vozes, 2017a
HAN, B. C. Sociedade do Cansaço. Petrópolis: Vozes, 2017b
KRENAK, A. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019
Texto produzido a partir da disciplina “Metodologias da Presença” do Programa de Pós Graduação em Ciências da Saúde da Universidade Federal de São Paulo (Ago-Out/2020), sob a condução da Profa. Dra. Marina Guzzo, Prof. Dr. Conrado Federici e Profa. Dra. Flavia Liberman.